sexta-feira, 22 de julho de 2011
PROCISSÃO DAS ALMAS
Passado o Carnaval, começava a Quaresma e as assombrações continuavam por aí.
Dizem que, naquela época, a Quaresma era muito misteriosa.
Os santos ficavam cobertos de pano roxo, ninguém ia pra caçada e não se tocava viola. À noite, o povo não saía de casa porque podia trombar com a Procissão das Almas.
Essa procissão acontecia apenas uma vez em toda a Quaresma e era sempre na lua cheia. À meia-noite, o cortejo partia luminoso do cemitério, uma beleza de outro mundo.
Quem fosse atrevido de abrir a janela, podia ver aquela procissão, que mais parecia de gente viva, percorrendo as ruas da cidade, em filas compridas.
As almas boas na frente, cantando. As ruins iam atrás.
Numa sexta-feira de março, Luzia ficou costurando até tarde, mesmo sabendo que não se podia coser à noite. Naquele tempo, só as mortalhas eram costuradas fora de hora.
A Luzia estava com o trabalho atrasado e nem deu pelota pra isso.
“Não há de ser hoje que as almas vão aparecer.”
Daí a pouco, bateram à sua porta.
A costureira foi atender e viu uma mulher de preto, com uma vela na mão. Luzia logo achou que fosse alguém importante, porque a mulher era bem apessoada.
A mulher, muito educada, perguntou se podia arrumar o coque que estava se desfazendo. Luzia indicou a penteadeira, a senhora elegante ajeitou o penteado e elas conversaram um pouco.
Por fim, a mulher de preto agradeceu a gentileza e foi embora.
Então a costureira notou que a mulher tinha esquecido a vela em cima da penteadeira e achou melhor devolver.
Luzia pegou a vela e percebeu que estava segurando um osso. Sentiu um calafrio nas costas e ficou mais branca que o osso em suas mãos.
Parecia que o tempo tinha parado.
Luzia fechou a porta o mais rápido que pôde, correu pro quarto e começou a rezar. Nem conseguiu dormir, a imagem da mulher não saía da sua cabeça. Quando amanheceu, foi direto falar com o padre.
- Minha filha, vamos rezar muito até a meia-noite.
Na verdade, eles sabiam que a mulher de preto voltaria pra buscar a alma da costureira naquela noite, depois das doze badaladas. Só não sabiam como reverter essa situação.
A notícia logo se espalhou por Jacareí e o compadre Quinzinho, que era benzedor dos bons, explicou tudo pra Luzia.
Quinzinho conhecia bem esse trato e disse que a única forma da costureira se salvar, era levando dois recém-nascidos para protegê-la da mulher do outro mundo.
E pra arranjar duas crianças recém-nascidas?
O fato é que o Quinzinho arrumou.
A noite foi chegando, a Luzia, o padre, o compadre e toda a cidade rezando.
As casas se fecharam mais cedo do que já era costume. Pra se precaver, muita gente reforçou as trancas das portas e jogou água benta em tudo quanto era canto.
A Luzia só enconstou a porta da rua, porque sabia que não ia adiantar trancar.
Um pouco depois da meia-noite, a mulher de preto bateu na porta. Dessa vez, a Luzia reparou e viu que o olho da mulher não tinha fundo.
Aí gelou tudo, até o último fio de cabelo da costureira.
A mulher sem o fundo do olho entrou e não falou nada.
A Luzia indicou a penteadeira, por educação. Pensou até em oferecer água porque sabia que água é abençoada, mas achou melhor não bancar a marota com assombração.
- Você sabe o que eu vim buscar.
Luzia engoliu em seco e mostrou o osso.
Então a assombração deu uma olhadela para os bebês sobre a cama e se voltou à costureira:
- Faz tempo que eu quero levar você, Luzia.
A costureira quase desmaiou de medo.
- Eu tinha certeza que seria dessa vez, mas você se safou. A inocência dessas crianças salvou sua alma.
A mulher de preto olhou de novo os recém-nascidos e saiu sozinha.
Com o rabo do olho, Luzia ainda teve tempo de ver a mulher de preto sumindo na escuridão.
A artimanha do Quinzinho benzedor tinha funcionado.
Os recém-nascidos eram apenas um encantamento. O raizeiro, conhecedor dos mistérios do mundo do além, mais uma vez conseguiu enganar uma assombração.
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