quinta-feira, 28 de julho de 2011

MINA

   Tiana benzedeira contava que tinha ouvido de sua avó uma história do tempo da escravidão.

   Era sobre Mina, uma criança escrava, guardada por bênçãos da madrinha, recomendada aos anjos e acompanhada por patuás.

   A tal menininha, que morava na Fazenda Siriema, irradiava uma sorte danada.

   Se tinha doce desandado e a criança se achegava, o doce consertava; a plantação florescia direitinho quando a menina ajudava a semear, e os bichos davam cria mais rápido se ela estava por perto.

   A sorte de Mina era tanta, que a sinhá da fazenda vizinha, queria roubá-la. A mulher achava que a criança traria fartura para as suas terras.

   Essa sinhá se chamava Virgília e era um tipo dado a fazer malvadeza.

   Até o olho da sinhá era ruim, invejoso. Pessoa de olho ruim é gente que foi batizada com quebranto.

   De vez em quando, a sinhá Virgília aparecia na Fazenda Siriema.
Vinha como quem não quer nada e tentava chegar perto da menina.

   Às vezes, a sinhá ficava só na porteira, com seu cão de guarda, olhando o movimento na fazenda.

   Sinhá Virgília queria tudo que era dos outros. Diziam até que ela já tinha roubado um terço de prata de sua prima.

   Na Fazenda Siriema, sumiam umas galinhas gordas. Ninguém nunca soube o paradeiro, mas o certo é que elas desapareciam sempre que a sinhá Virgília andava por lá.

   Numa manhã, Mina saiu da casa grande e foi brincar sozinha nos arredores do rio. Distraída na sua meninice, não viu quando a sinhá Virgília se aproximou.

   A sinhá agarrou o braço de Mina e a menina gritou, mas ninguém apareceu.

   Então Mina apertou os olhinhos pra não ver a cara da sinhá Virgília e nem a do cão de guarda da mulher.

   Foi aí que a Mãe de Ouro surgiu.

   Ninguém sabia direito o que era esse ser encantado. O povo dizia que parecia um pilão brilhante nas cachoeiras. Também falavam de uma luz que passava no céu de madrugada.

   A Tiana benzedeira contava que era uma mulher dourada e bondosa.

   E quando a Mãe de Ouro aparecia à noite, se penteando no rio Jaguari, caíam estrelinhas luminosas dos seus cabelos.

   Nesse dia, a Mãe de Ouro veio para salvar a Mina.

   A mulher encantada começou a brilhar tanto e tanto que a sinhá Virgília quase ficou cega na hora. Com tanta luz nos seus olhos, a sinhá largou a menina e saiu gritando.

   Mina foi levada pelas mãos da Mãe de Ouro e nunca mais apareceu.

   Só se sabe que no rio Jaguari, onde aconteceu o encantamento, sempre tinha uma mancha dourada na água.

   Era um cardume enorme e não havia pesca que desse fim nele.
Estava lá o tempo todo, até na Sexta-Feira Santa.

   A mancha de peixes dourados só sumiu quando as águas da barragem cobriram tudo.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

PROCISSÃO DAS ALMAS


   Passado o Carnaval, começava a Quaresma e as assombrações continuavam por aí.


   Dizem que, naquela época, a Quaresma era muito misteriosa.


   Os santos ficavam cobertos de pano roxo, ninguém ia pra caçada e não se tocava viola. À noite, o povo não saía de casa porque podia trombar com a Procissão das Almas.


   Essa procissão acontecia apenas uma vez em toda a Quaresma e era sempre na lua cheia. À meia-noite, o cortejo partia luminoso do cemitério, uma beleza de outro mundo.


   Quem fosse atrevido de abrir a janela, podia ver aquela procissão, que mais parecia de gente viva,  percorrendo as ruas da cidade, em filas compridas.


   As almas boas na frente, cantando. As ruins iam atrás.


   Numa sexta-feira de março, Luzia ficou costurando até tarde, mesmo sabendo que não se podia coser à noite. Naquele tempo, só as mortalhas eram costuradas fora de hora.


   A Luzia estava com o trabalho atrasado e nem deu pelota pra isso.


   “Não há de ser hoje que as almas vão aparecer.”


   Daí a pouco, bateram à sua porta.


   A costureira foi atender e viu uma mulher de preto, com uma vela na mão. Luzia logo achou que fosse alguém importante, porque a mulher era bem apessoada.


   A mulher, muito educada, perguntou se podia arrumar o coque que estava se desfazendo. Luzia indicou a penteadeira, a senhora elegante ajeitou o penteado e elas conversaram um pouco.


   Por fim, a mulher de preto agradeceu a gentileza e foi embora.


   Então a costureira notou que a mulher tinha esquecido a vela em cima da penteadeira e achou melhor devolver.


   Luzia pegou a vela e percebeu que estava segurando um osso. Sentiu um calafrio nas costas e ficou mais branca que o osso em suas mãos.


   Parecia que o tempo tinha parado.


   Luzia fechou a porta o mais rápido que pôde, correu pro quarto e começou a rezar. Nem conseguiu dormir, a imagem da mulher não saía da sua cabeça. Quando amanheceu, foi direto falar com o padre.


   - Minha filha, vamos rezar muito até a meia-noite.


   Na verdade, eles sabiam que a mulher de preto voltaria pra buscar a alma da costureira naquela noite, depois das doze badaladas. Só não sabiam como reverter essa situação.


   A notícia logo se espalhou por Jacareí e o compadre Quinzinho, que era benzedor dos bons, explicou tudo pra Luzia.


   Quinzinho conhecia bem esse trato e disse que a única forma da costureira se salvar, era levando dois recém-nascidos para protegê-la da mulher do outro mundo.


   E pra arranjar duas crianças recém-nascidas?


   O fato é que o Quinzinho arrumou.


   A noite foi chegando, a Luzia, o padre, o compadre e toda a cidade rezando.


   As casas se fecharam mais cedo do que já era costume. Pra se precaver, muita gente reforçou as trancas das portas e jogou água benta em tudo quanto era canto.


   A Luzia só enconstou a porta da rua, porque sabia que não ia adiantar trancar.


   Um pouco depois da meia-noite, a mulher de preto bateu na porta. Dessa vez, a Luzia reparou e viu que o olho da mulher não tinha fundo.


   Aí gelou tudo, até o último fio de cabelo da costureira.


   A mulher sem o fundo do olho entrou e não falou nada.


   A Luzia indicou a penteadeira, por educação. Pensou até em oferecer água porque sabia que água é abençoada, mas achou melhor não bancar a marota com assombração.


   - Você sabe o que eu vim buscar.


   Luzia engoliu em seco e mostrou o osso.


   Então a assombração deu uma olhadela para os bebês sobre a cama e se voltou à costureira:


   - Faz tempo que eu quero levar você, Luzia.


   A costureira quase desmaiou de medo.


   - Eu tinha certeza que seria dessa vez, mas você se safou. A inocência dessas crianças salvou sua alma.


   A mulher de preto olhou de novo os recém-nascidos e saiu sozinha.


   Com o rabo do olho, Luzia ainda teve tempo de ver a mulher de preto sumindo na escuridão.


   A artimanha do Quinzinho benzedor tinha funcionado.


   Os recém-nascidos eram apenas um encantamento. O raizeiro, conhecedor dos mistérios do mundo do além, mais uma vez conseguiu enganar uma assombração.

terça-feira, 12 de julho de 2011

NÃO ME LEVE A MAL, HOJE É CARNAVAL




     Contam que num Carnaval em Santa Branca começou a cair um  chuvaréu que não parou até a Quarta-Feira de Cinzas. E pra completar, ainda faltou luz durante todo o festejo.

     Nada disso foi motivo pra estragar a folia e o povo iluminou os bailes com lanternas de vela e papel celofane.


     Logo na primeira noite, apareceu na festa uma moça de cabelos cacheados, que morava em Jacareí. Dirceu, filho do comerciante Sarkis, se encantou por ela.
 

     A moça tinha uma beleza rara e até seu nome era diferente. Chamava-se Sílvia Joana.
 
     Os dois brincaram juntos o Carnaval. Todas as noites, quando acabava o baile, Dirceu queria levar Joana até Jacareí, mas ela nunca aceitava.
 

     Na Terça-Feira Gorda, a chuva apertou e Dirceu emprestou seu casaco para a moça se proteger. Era um casaco marrom, de modelo antigo, que tinha sido do avô dele.
 

     Joana agradeceu, disse que devolveria o casaco e o rapaz pediu o endereço dela para buscá-lo. Na verdade, Dirceu nem estava ligando muito para o casaco, o que ele queria mesmo era ver a moça de novo.
 

     A chuva continuou por um par de dias e logo que um solzinho apareceu, Dirceu foi até Jacareí. 

     O rapaz chegou numa casa, lá pros lados do Esmaga Sapo, e bateu na porta.


     O pai da Joana atendeu.
 

     Dirceu, um pouco engasgado, se apresentou e pediu permissão para falar com a moça. Disse ao senhor que tinha conhecido Sílvia Joana  no Carnaval e emprestado a ela seu casaco, por causa da chuva forte.
 

     Da porta, o pai virou-se e olhou firme nos olhos da mãe, que
estava na sala. Depois se voltou para o rapaz.


     - Não é possível que você tenha conhecido a Joana no Carnaval.


     Dirceu então imaginou que o pai era bravo e que, de certo, a Joana tinha ido escondida ao Carnaval em Santa Branca. Pensou rápido. 

     - Meu senhor, não tem com o que se preocupar. Eu posso garantir que sua filha se portou muito bem.


     - Não é possível...


     - Eu sei que a Sílvia Joana é uma moça de família. E, com todo respeito, queria dizer que as minhas intenções são as melhores.


     Os pais não falaram nada, só ficaram olhando o rapaz.


     - O senhor me autoriza a ver sua filha? 


     O pai olhou direto nos olhos do Dirceu.


     - A Joana já morreu, moço. Faz catorze anos.


     O rapaz, sem acreditar, achou que aquele era um jeito do pai espaventar os pretendentes da filha. Dirceu insistiu em ver a moça.


     Prosa aqui, prosa acolá, o pai tentava de todo jeito convencer o visitante de que a moça do Carnaval não era Sílvia Joana.


     E o rapaz continuou persistindo, pois o endereço que Joana tinha dado estava certo.


     Dirceu, mais empacado que mula em frente de corredeira, não queria arredar pé dali.


     Então o pai resolveu levar o moço até o Cemitério do Avareí para mostrar o túmulo da Joana com foto e tudo. Foram os dois pra lá.
 

     Nem precisaram chegar muito perto. Dirceu logo reconheceu seu casaco marrom pendurado na lápide da Joana.

     Com as pernas bambas, Dirceu picou a mula, meio torto mesmo, todo esquisito.


     O rapaz não tinha dançado com gente viva.



                                                 ...

     No Carnaval de antigamente era assim, as assombrações ficavam soltas por aí desde o sábado da folia.


     Se alguém olhasse um baile de Carnaval pelo buraco da fechadura e fizesse uma reza forte, enxergava as almas misturadas com os vivos que estavam no salão.


     Foliões deste e do outro mundo se confundiam, deixando o povo de cabelo em pé.

                                                                                                                        (do livro "Encantos e Malassombras de Jacarehy")                               

quinta-feira, 7 de julho de 2011

CORPO SECO GANHA UM DOM!

     Olá, amigos!

     Devido ao meu bom comportamento nos últimos meses, eu ganhei um dom: o de falar como uma pessoa desta época (2011) e entender o que vocês falam!

     Eu estava com muita dificuldade de me expressar e também de entender as gírias deste tempo, os costumes, etc, mas agora tô entendendo tudo, tá ligado? rsrsrs

     Amigos, agora eu tb estou no Facebook e o meu perfil é Corpo Seco. Também dá pra achar por Corpo Seco (Jacareí) .


     Tem uma página de Corpo Seco que não sou eu. A minha é um perfil pessoal mesmo e tem a minha imagem, essa que segue abaixo.

     Espero vocês lá!

     Abraços!

     Corpo Seco



quarta-feira, 6 de julho de 2011

O BOM PARTIDO

     Contam que, naquele tempo, havia uma moça muito bonita chamada Olívia. Tão formosa que todos os rapazes queriam se casar com ela. Fazia fila no portão da moça, mas ela desdenhava de todo mundo.

     Se o sujeito tinha um defeitinho, a Olívia logo descartava. Ela falava que só se casaria com um homem rico, bem apessoado e que soubesse francês.

     Até que numa tarde, apareceu um moço montado num cavalo alazão, com uma sela de prata reluzente.

     Este cavaleiro era diferente de todos os rapazes da região. Um sujeito bem apanhado, com dente de ouro e terno de linho inglês. E ainda por cima, falava seis línguas.

     Foi um fuzuê.

     Todas as moças queriam conhecer o cavaleiro, mas assim que ele viu a Olívia na janela, já foi tirando o chapéu.

     A Olívia logo quis se casar com o rapaz, ele era um sonho! E daí para marcarem o casamento foi ligeiro.

     Dona Isaldina nem acreditava que a filha ia desencalhar, finalmente tinha aparecido um moço de que a Olívia gostasse.

     O casamento foi uma boniteza só e a festa durou três dias.

     Porém, depois de um certo tempo, começaram a acontecer umas coisas estranhas...

     O moço não trabalhava, mas sempre tinha dinheiro na gaveta. E por onde ele passava ficava um cheiro forte no ar.

     A Olívia não estranhava nada.

     O rapaz era cheio de truques. Ateava fogo nos gravetos sem tocar neles, dançava numa corda bamba no quintal e fazia desaparecer algumas cartas do baralho. A Olívia ficava vermelha de tanto rir.

     Esse sujeito também não podia ver um bicho que já ia maltratando.Dava pimenta pro gato, cortava o rabo do cachorro, atirava em tudo quanto era passarinho.

     Num fim de tarde, assim que terminou de apurar o doce de abóbora, Dona Isaldina, chamou a Olívia num canto.

     - Ói, minha filha. Você tanto implicou com os moços desta cidade de, tanto escolheu, que acabou se casando com o Coisa Ruim.

     A Olívia escutou, até ergueu as sobrancelhas, mas não entendeu direito o que a mãe falou.

     - Pode deixar que eu dou um jeito nisso, filha.

     No dia seguinte, Dona Isaldina pegou uma rolha, fez uma reza forte, desenhou três cruzes na parte de cima da rolha e a guardou no bolso do avental.

     Quando o sujeito chegou da rua, Dona Isaldina já foi passando um cafezinho e colocando o bolo de fubá na mesa.

     - Eu vejo que você é um moço talentoso. Faz todos esses prodígios...

     O rapaz pegou uma fatia de bolo e sorriu, vaidoso.

     Aí, Dona Isaldina mostrou uma garrafa de vidro pra ele.

     - Mas acho que nessa garrafa você não consegue entrar.

     - Ah, isso é fácil, minha sogra.

     Num instante, o sujeito se desmanchou e foi pra dentro da garrafa.

     A sogra, mais do que depressa, pegou a rolha e tapou a garrafa. Lá estava o Coisa Ruim, presinho da silva. 

     
     Então, Dona Isaldina levou a garrafa pro brejo do Matutu e a enterrou. Às vezes, quando chovia e a taboa dobrava, o pessoal passava na estrada e escutava uma vozinha.

     - Me tira daqui, me tira daqui!

     Ninguém ia porque todo mundo sabia que era o diabo.

     O tempo passou. Dona Isaldina ficou velhinha, a Olivia não se casou mais e o alazão do cavaleiro sumiu.
Mas, como sempre tem um curioso, a história continuou...

     Num dia de agosto, depois de um toró, o tal do curioso foi ao brejo. Procurou, procurou, até que achou a garrafa enterrada, com o gargalo pra fora. A rolha da garrafa estava coberta de cera, que a sogra tinha colocado pra não apodrecer.

     Então, o curioso virou a garrafa de um lado, virou do outro e conseguiu tirar a rolha. Saiu o Coisa Ruim de lá, de rabo e chifre e falou:

     - Com sogra nem o diabo pode!

     E sumiu num estouro, deixando um cheiro de enxofre no ar.
                                                              (do livro "Encantos e Malassombras de Jacarehy")